terça-feira, julho 22, 2008

Um lugar sobre as brasas

Os olhos cansados e observadores do escritor mexicano Juan Rulfo, falecido em 1986, queimaram as poucas plantas e o chão árido daquele planalto esquecido e poeirento onde pululavam fomes, tragédias e guerras. Nos 15 contos do volume O Planalto em Chamas de 1953, descortinam-se diante do leitor um tropel de senhoras de xales na cabeça e terços de contas entre os dedos com a missão de canonizar um santeiro que nunca foi santo; de agricultores com enxadas nos ombros à procura de uma terra que lhes foi doada e que de lá não brota um único grão de coisa alguma; de pessoas marcadas para morrer e pedindo em desespero que não lhes matem e também de loucos sem cura que racham o crânio na parede.


RULFO Falecido em 1986, o mexicano é um dos precursores do realismo mágico latino-americano

É um relato cruel de pessoas esquecidas num México agrário e revolucionário. A Revolução Mexicana – que incendiou o país a partir de 1910 e ajudou a derrubar o ditador Porfírio Díaz – junto com a Guerra Cristera, um levante armado contra alguns artigos anti-católicos da Constituição de 1917, detonaram o mecanismo da bomba que acabaria resvalando em muitas famílias latifundiárias mexicanas, incluindo a de Rulfo. Com a família já decadente, ele acompanhou o assassinato do pai em 1923 por motivos políticos e a morte da mãe em 1927. San Gabriel, o pequeno povoado onde foi criado, era um mar de superstição e culto aos mortos.

Todas essas referências unidas produziram uma das obras mais perturbadoras do século XX: “não são mais de 300 páginas, porém são quase tantas e creio que tão perduráveis como as que conhecemos de Sófocles”, afirmou o prêmio Nobel de Literatura de 1982, o colombiano Gabriel Garcia Márquez na comemoração do cinqüentenário da publicação de O Planalto em Chamas. E completa: “O resto daquele ano [em que conheci a literatura de Rulfo] não pude ler nenhum outro autor, porque todos me pareciam menores”. Isso foi o que impulsionou e inspirou Márquez a continuar sua própria obra. Tempos depois, eles escreviam juntos o roteiro do filme El gallo de oro de 1964.


Os deserdados e excluídos de O Planalto, frutos da observação aguçada do escritor sobre seu povo, são duros como o chão em que pisam.


Rulfo tem um pé no realismo mágico e outro no realismo puro. A cidade fictícia de Comala, do livro Pedro Páramo (1955), recebe o forasteiro Juan Preciado que vem em busca do pai. A sucessão das páginas traz uma profusão de mistérios e almas penadas que enganam o leitor tanto quanto ao próprio protagonista. Os deserdados e excluídos de O Planalto, frutos da observação aguçada do escritor sobre seu povo, são duros como o chão em que pisam. As casas incendiadas e as balas que não param de uivar no céu dão a atmosfera do conto homônimo ao título do livro; enfurecido com a acusação de que teria matado Odilón Torrico, o protagonista de Encosta das Comadres mata o outro irmão Torrico, com requintes de crueldade, para provar sua inocência.

No genial Você não está ouvindo os cachorros latirem?, a longuíssima jornada de um pai com o filho doente nos ombros em busca do povoado Tonaya é uma elaboração refinadíssima de todo o ódio que ambos sentem um pelo outro. A mãe morta, assim como todos os amigos; não lhes restam nada a não ser um ao outro na busca por esse lugar, que nunca chega e que fará o filho voltar a andar. São léguas de distância, num completo deserto. O garoto nas costas do mais velho que o pergunta se, de cima de onde ele está, consegue ver alguma coisa ou pelo menos ouve os cachorros latirem – que o velho já escuta mesmo de longe. Mas o filho, a quem o pai atribui toda a responsabilidade pela morte da mãe, não responde nada, estafado, esgotado, clamando por água – mesmo quando parece que o povoado já está se aproximando. E naquelas migalhas de afeto, resta ao pai condoer-se ainda mais com a distância infinita e intransponível entre eles: “Você não ouvia, Ignacio? Você não me ajudou nem mesmo com esta esperança”.

A percepção do mundo de Rulfo surge imensa e inexaurível em seus textos. Numa das poucas entrevistas que deu em vida, ele esclarece que o clima de Pedro Páramo já se antecipava no conto Luvina de O Planalto em Chamas.

– Mas Pedro Páramo vem de antes. Já estava, quase que posso dizer, planejado mais ou menos uns dez anos antes. Eu não havia escrito uma só página, mas estava com ele dando voltas na cabeça. E houve uma coisa que me deu a chave para desenvolvê-lo, destrinchar esse fio ainda enrolado. Foi quando regressei, trinta anos depois, ao povoado em que vivera, e o encontrei desabitado. Passei a noite lá, e é um lugar onde venta muito, está aos pés da Sierra Madre. E durante a noite, casuarinas mugem, uivam. E o vento. Compreendi estão essa solidão de Comala, esse lugar. O nome não existe, não. Mas a derivação de “comal” – um recipiente de barro que se põe sobre as brasas para esquentar as tortillas – e o calor que sugere é que me deram a idéia do nome. Comala: lugar sobre as brasas.

E essas brasas queimam ainda o chão de Comala, de Zoplatán, de San Gabriel, enfim, daquele México cruel de Juan Rulfo.

MÉXICO O Planalto em Chamas é um relato de um país destruído por guerras e fome

3 Comentários:

Blogger Mayara Carol Araujo disse...

Esse foi um dos melhores textos teus que eu li. Se o celestino n tivesse posto um 10,5 nesse negócio era de arrancar a cabeça dele!

Mto bom mesmo, Alan. Pretendo ler o livro, essa coisa de méxico e chão de terra batida é a minha cara.

Abraços!

8:18 AM  
Blogger Débora Medeiros disse...

Eu lembro desse texto aí, ó!

Mal posso esperar pra ver outras jóias jornalísticas suas abrilhantando nossos periódicos :P

É, já estou no espírito do rega-bofe do Ideal XDD

11:40 PM  
Blogger Lara Vasconcelos disse...

porra, Alan...
Você me convenceu.

11:16 AM  

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